
Bia Ferreira: um ponto fora da curva
O presidente Lula sancionou esta semana a nova Lei de Cotas. Em cerimônia no Planalto, ele defendeu a política afirmativa como instrumento democrático, em favor do acesso à educação de nível superior.
Eu assino embaixo, claro. E avanço sobre o território pantanoso demarcado pelos movimentos identitários para afirmar a minha filiação a tal causa. Em lugar de palavras gastas, no entanto, recorro à música de Bia Ferreira.
Um chamado. Jamais escondi a falta de paciência com o discurso identitário corrente, muito higiênico e homogêneo. Mas Bia Ferreira é um ponto fora da curva.
Embora o recorte objetivo de suas composições não seja o mais original, restrito a uma oportuna declaração de guerra ao inimigo de sempre - o machismo branco, heteronormativo, neopetencostal, bem aquinhoado, a quintessência do tal patriarcado -, as canções reunidas em ‘Igreja lesbiteriana – Um chamado’, 2019, são dotadas de uma força invulgar e merecem toda a atenção do mundo.
Boa parte do repertório foi conhecida antes mesmo do álbum vir à flor da matéria, divulgada em shows e singles, com grande repercussão, a ponto de chegar aos ouvidos atentos do mano Caetano Veloso.
“Brilha minha guia”, a faixa de abertura, cantada a capela, no entanto, vale sozinha por muito disco cheio. Declamados em tom aguerrido, os versos da moça evocam santidades e provocam arrepios.
“Igreja lesbiteriana” cumpre a promessa realizada lá atrás, desde quando Bia Ferreira resolveu soltar a voz e jogar o corpo no mundo.
Não bastasse a potência da voz, a poesia de inflexão militante, conhecida desde o primeiro momento, o álbum ainda transborda o calor próprio dos metais, tem groove, balanço e frescor suficientes para furar a bolha onde as suas palavras chovem no molhado.
Digo e repito: não conheço outro trabalho capaz de equacionar engajamento e valor musical de maneira tão feliz. “Cota não é esmola”, o primeiro hit da moça; “Não precisa ser Amélia”, de um feminismo cheio de melanina; “Boto fé”, um sopro de otimismo e boa vontade, comunicam um discurso de gênero e racial radical, muito autêntico, derivado da experiência, sem abrir mão do suingue.
Aqui, o ritmo é didático, o balanço do corpo faz a cabeça nublada de privilégios pegar no tranco, areja o pensamento.
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