Aparte
Opinião - Fiscais da lei ou amigos do rei?

[*] Denise Albano e Rodorval Ramalho

A Constituição de 1988 aprimorou e ampliou de forma inédita as funções do Ministério Público. Desde então, essa instituição tem desempenhado um papel crucial, sobretudo na fiscalização daqueles que ocupam funções no aparelho do Estado brasileiro.

Considerando o nosso histórico patrimonialista e a nossa proverbial dificuldade de punir os poderosos, o Ministério Público constitui, inegavelmente, um enorme avanço no processo de modernização do Brasil. No imaginário dos cidadãos, o MP está sempre à disposição e alerta para desenvolver seu trabalho de fiscalização.

Há quem acuse procuradores de fiscalizarem “até demais”, inclusive ultrapassando os limites da legislação vigente. De nossa parte, estamos na posição oposta: num Estado patrimonialista como o nosso, é melhor pecar pelo excesso de zelo do que pela omissão, contanto que tudo esteja dentro dos limites da lei.

Mas, como toda e qualquer instituição, o MP também está sujeito a excessos e a omissões, cabendo aos seus dirigentes e, principalmente, aos variados segmentos da sociedade civil - o que inclui a imprensa, as associações e cidadãos em geral - a permanente e incontornável vigília cívica sobre tais distorções.

É verdade que muitos se intimidam com esse tipo de atuação porque promotores e procuradores parecem inatingíveis e invulneráveis. Entretanto, sem esse debate público e essa “fiscalização dos fiscais” os riscos de degeneração da instituição se ampliam significativamente. Afinal, como afirma a sabedoria popular, o exercício do poder traz consigo muitas tentações.

Ao longo de mais de três décadas, as ações positivas do MP são amplamente majoritárias em relação aos seus equívocos e distorções, o que o tornou uma instituição sólida e prestigiada, gozando de grande legitimidade junto a amplos setores da sociedade brasileira.

Assim, para que o órgão não deixe o sucesso “lhe subir à cabeça”, é fundamental manter a tal vigilância pública, da qual falamos anteriormente. É nessa condição, de cidadãos que exercem a liberdade de expressão e a vigilância democrática, que expressamos nossa preocupação quanto à atuação de alguns procuradores do MPF/SE relativa às eleições na Universidade Federal de Sergipe. 

Desde o mês de janeiro do ano passado temos tentado sensibilizar os procuradores a observarem as manobras do então reitor Angelo Antoniolli para eleger o seu sucessor. Como todos sabem, o mesmo grupo político domina a UFS há quase três décadas e esse tipo de longevidade no poder não poupa seus protagonistas de erros e abusos os mais diversos, ainda mais diante de mecanismos de controle tímidos e de ausência de uma oposição digna desse nome.

Apesar dos alertas e apelos, o MPF/SE vem se negando, sistematicamente, a promover um processo coerente e detalhado de investigação do que vem ocorrendo em nossa universidade. Assim, é legítimo questionar quais as verdadeiras razões para tamanha indisposição, diante da pletora de evidências e indícios de ilegalidades várias no processo sucessório da Reitoria. 

Senão, vejamos. Houve um explícito boicote a uma Medida Provisória editada em dezembro de 2019 que obrigava a prévia consulta à comunidade no processo de escolha de novos reitores para as universidades e institutos federais. Mas, ignorando recomendações do próprio MPF para que logo iniciasse o processo eleitoral nos termos dessa Medida Provisória, o então reitor passou seis meses driblando essa norma e somente deflagrou o processo dois dias após ela caducar.

Ao iniciar o processo, o reitor Angelo Antoniolli desprezou a tradicional votação pelo conjunto de servidores e estudantes da UFS, impondo uma eleição restrita aos Conselhos Superiores com seus 82 votantes e, o mais grave, sem providenciar a aprovação de regras sobre o procedimento para a eleição em um novo modelo de eleição on-line.

Ao reconsiderar a primeira decisão de arquivamento do inquérito que investiga essa eleição, assinado em 14 de julho, ou seja, na véspera da eleição nos Conselhos, o procurador considerou os argumentos do nosso recurso “pertinentes, substanciosos e indicativos de que o processo eleitoral poderia ter sua lisura maculada”.

Assim, cobrou ao reitor que se manifestasse “pormenorizadamente” sobre os pontos apresentados e “indicasse todas as providências adotadas para adequar a normativa vigente a uma eleição remota, seja para garantir e atestar a confiabilidade do sistema de votação a ser utilizado, seja, em suma, para garantir a lisura e legitimidade do pleito vindouro”.

A despeito disso, assim ocorreu a eleição remota da lista tríplice da UFS: sem regras, sem haver inscrição de chapas, sem debates, sem formação de uma comissão eleitoral, com a máquina administrativa sendo explicitamente usada para promover o candidato “mudo” da Reitoria, com uso de um sistema de votação eletrônica controlado por comissionado nomeado pelo reitor e sem realização da prometida auditoria no sistema de votação.

Com essas e tantas outras evidências de irregularidades e abusos, o esperado e planejado ocorreu: o nome mais votado foi aquele escolhido pelo reitor como seu sucessor. É provável que tamanho festival de ilegalidades deixasse corado até o mais desabrido postulante a ditador.

Enquanto isso, a investigação seguia em aberto, e em outubro houve um despacho de um outro procurador que cobria as férias do colega que estava à frente do caso. Nele, uma série de providências foi cobrada ao então reitor da UFS, como a apresentação da norma que regulamentou a eleição remota ou prova de que o procedimento adotado foi referendado pelo Conselho Superior, o resultado de eventual auditoria feita no sistema, a razão da presença de 100 pessoas na sala de reunião onde ocorreu a votação quando eram apenas 82 os votantes, dentre várias outras graves e relevantes questões.

Apesar da apresentação de um documento de questionável legitimidade pela Reitoria da UFS, com repostas vagas ou mesmo inexistentes acerca das diversas providências solicitadas no citado despacho, o procurador do caso decidiu novamente arquivar o procedimento.

Com isso, tivemos que apelar à Câmara Recursal do Ministério Público em Brasília para contornar o que seria uma “síndrome do engavetamento” que acometeu o procurador do caso. E, diante de tantas evidências apoiadas em vasta e consistente documentação probatória, esse órgão colegiado devolveu os autos para o MPF de Sergipe para que fosse reaberto e procedimento e se promovesse a investigação devida.

Ciente de tal decisão, o procurador à frente do inquérito insistiu no arquivamento e devolveu os autos para o MPF em Brasília. Ora, se deve ser respeitada a independência funcional de membros do MP, também é necessário efetivar mecanismos de contenção de eventuais desvios ou excessos.

Assim, se toda e qualquer decisão de seus integrantes não fosse passível de análise e revisão, teríamos no MP detentores de um poder incontrastável, absoluto e, por óbvio, também não haveria razão de existir de uma Câmara revisional na cúpula do MPF com atribuição para homologar ou não a decisão de procuradores de promover o arquivamento de procedimentos de investigação. 

Mas se chama atenção essa morosidade na investigação sobre as condições em que se processou a eleição da lista tríplice da UFS, mais surpreendente foi o que ocorreu após esse segundo despacho de arquivamento de um inquérito que já durava quase um ano.

Ainda com o prazo recursal em aberto dessa decisão, recurso que foi interposto e, como destacado, com decisão favorável à reabertura da investigação, outros dois procuradores do MPF/SE instauraram de ofício um novo inquérito para investigar, basicamente, o mesmo objeto: a eleição da UFS. 

Em surpreendente agilidade, essa nova investigação foi concluída em duas semanas e, de imediato, foi promovida uma Ação Civil Pública por esses procuradores para que a Justiça reconhecesse a legalidade da lista tríplice, determinasse ao presidente da República a escolha de um dos nomes nela presente e destituísse a reitora pro tempore para que assumisse o pró-reitor mais antigo egresso da gestão do ex-reitor Angelo Antoniolli.

Entendemos que muitos, dentro e fora da universidade, não querem “expor” a UFS a tais processos investigatórios pelo receio de “arranhar” a imagem da instituição. Sabemos que existem aqueles que, por afinidades ideológicas, também não se sentiriam à vontade para revelar as irregularidades de “companheiros de jornada”.

Outros, ainda, consideram as universidades federais, em nome de uma delirante concepção de autonomia, como repúblicas autônomas com poderes ilimitados. Por fim, existe quem, simplesmente, não quer as investigações pelo simples fato de que, ao fim e ao cabo, aqueles que cometeram as irregularidades podem enfrentar a justa e reparatória mão da Justiça.

Entretanto, procuradores da República jamais poderão ser enquadrados por quaisquer das disposições acima citadas, sob pena de macularem a imagem do Ministério Público Federal e, o pior, deixar de exercer o papel precípuo do órgão: fiscalizar a obediência à lei e o respeito ao Estado Democrático de direito, doa a quem doer. 

[*] São professores da Universidade Federal de Sergipe.

 

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