Aparte
Opinião - O Sesc Sergipe e sua estranha nova política de exclusão

[*] Antônio da Cruz

“Ô menina vai ver nesse almanaque
Como é que isso tudo começou

Diz quem foi que fez o primeiro teto
Que o projeto não desmoronou
Quem foi esse pedreiro, esse arquiteto
E o valente primeiro morador
Me diz, diz, me diz o morador”

Chico Buarque de Holanda, em Almanaque

Algo de estranho acontece nos bastidores no Sesc-Sergipe com relação à política cultural. Recentemente fechou sua Galeria de Arte, na unidade central de Aracaju, a transformando numa academia de exercícios físicos. Não se sabe se para sempre, ou se é por causa da pandemia de Covid-19.

Agora, num arroubo elitista, a Gerência Regional da instituição passou a exigir que, para participar de várias atividades, é preciso ter no mínimo graduação. Ou seja, o curso universitário, incluindo nesse propósito o artista visual que, agora, para expor suas obras deverá ter a formação mínima na graduação superior.

A Gerência que está cuidando da programação cultural lembra alguém dirigindo um veículo de vendas nos olhos, em via estreita, tendo nos lados postes robustos de concreto armado, ou parece viver noutro mundo, um mundo irreal, bem além do acadêmico, de perspectiva estreita.

A título de exemplo, só para lembrar, o mundo acadêmico interage com as comunidades estabelecendo uma práxis de permutação de conhecimento de saberes e fazeres. Seu contato com a realidade vai extramuros nas atividades de extensão, e nela, os artistas autodidatas podem encontrar apoio, acolhimento e inclusão, o contrário do que o Sesc vem fazendo ultimamente.

O Sesc Regional de Sergipe contraria a Resolução Sesc nº 1.304/2015, que aprova a sua política cultural para todas suas unidades em todo o Brasil, e que já na sua introdução diz ter “o objetivo de respeitar, fomentar e difundir a diversidade cultural brasileira, expressa tanto na produção artística, quanto na produção intelectual e nas demais manifestações, devendo ser igualmente valorizadas, divulgadas e incentivadas, sem estabelecer hierarquia ou juízo de valor entre elas”.

Nos seus princípios, a política cultural do Sesc associa o direito à cultura aos direitos humanos e na intencionalidade estimula: “Que a instituição amplie seus esforços no sentido de criar condições que possibilitem à produção artístico-cultural se tornar um real instrumento de transformação dos indivíduos e da sociedade, por meio do seu estímulo e da sua difusão”.

Já nas diretrizes, orienta para se enfatizar “os processos de criação e experimentação”, “manter diálogo permanente com os diversos públicos”; “garantir equipe técnica especializada e infraestrutura adequada”.

O Sesc, entidade voltada para os comerciários, tem a tradição - o regional SE tinha até recentemente - de lidar com artistas de todas as linguagens e formação e sabe que a maioria é de autodidatas, e, nem por isso, seus eventos artísticos/culturais deixaram de ter qualidade. Não seria agora o caso de entrar em decadência por mantê-los na programação.

Ninguém deixa de fazer uma grande obra por ser autodidata, basta ter competência para tal. Quem fez a primeira casa no mundo certamente não tinha diploma universitário de arquiteto, e é compreensível imaginar que muitos tenham aprendido com ele.

É sabido que alguns artistas descobrem suas habilidades, desenvolvem suas técnicas e visam se enquadrar em um estilo e, só depois, buscam as instâncias de ensino superior, tanto numa faculdade, ou qualquer escola deste nível para obter a graduação de ensino superior, e ser diplomado; depois, o artista sai do curso, e volta a fazer o que sempre fez antes de passar por ele. Sim, ele ampliou seus conhecimentos, mas a práxis anterior ficou consigo, pois ele a alicerçou no seu imaginário e a consolidou junto ao público.

No caso de Sergipe, não existe curso superior para formar artista plástico, ou visual, como queiramos denominar, mas tão somente curso de licenciatura em artes. Pergunta-se: o Sesc em Sergipe importará artistas graduados?

Para participar de edital exigir de poeta, músico, artista visual uma graduação é dizer que está deixando de fora a maioria dos artistas. Não deixa de ser um critério, claro, mas excludente e pedante para atividades tão populares bem próximas das pessoas comuns, que é o público formado por comerciários.

Neste rumo, logo estará o Sesc somente admitindo nos seus editais e eventos mestres, doutores e pós-doutores. Dá pra imaginar que encontrará a granel (ironia).

É compreensível que haja incentivo aos artistas para a formação superior, ninguém em sã consciência será contra. A nossa realidade, porém, não oferece tal luxo: de excluir em nome de uma exigência burocrática artificial e discricionária quem, e em maioria, está a batalhar pela sobrevivência como artista.                                                                                       

O mundo real e suarento da arte não desenvolveu aptidão para lidar com os engendramentos da burocracia, e principalmente a que visa a excelência por título acadêmico a fórceps. O capricho do artista é para fazer bem feito o que aprendeu, em grande parte com seu próprio esforço, sensibilidade, intuição e empirismo.

Se a ciência não se limita a teorizar e tem de fazer experimentos - práticos - na arte, a excelência do artista está na sua prática diária, e é nela, portanto, que ele acumula conhecimento, aprimora-se e o resultado vem a público, quando as condições lhes são favoráveis.

Assim como em outras áreas, nas quais se prestam serviços relevantes ou notáveis à ciência, à cultura, à educação beneficiando de forma excepcional a humanidade, o artista também se enquadra neste contexto.

Não será a isto que se chama de notório saber, que resulta em reconhecimento pela sociedade e por instituições universitárias, que chegam a outorgar o título de Doutor Honoris Causa (por causa de honra), entre os casos, a artistas que não tiveram instrução formal acadêmica?                                                                                                                                     

O Sesc, (Regional SE), que tem dinheiro público para criar várias condições, está a tirar oportunidades, ignorando, excluindo e discriminando artistas.

As faculdades e universidades bebem na sabedoria do mundo real e nele estão os fazedores de arte e cultura, pessoas que dedicam suas vidas e consagram métodos e técnicas, saberes e fazeres assimilados por comunidades e que vêm a se constituírem patrimônios imateriais. São pessoas assim que o Sesc está querendo ver longe das suas atividades?

São inúmeros os artistas de notório saber cujos trabalhos foram objetos de TCC - Trabalho de Conclusão de Curso - para os alunos dos cursos da Universidade Federal de Sergipe e Universidade Tiradentes, por exemplo. Artistas autodidatas são convidados a ministrar palestras e minicursos nessas escolas de graduação; contribuem com seus conhecimentos acumulados ao longo da sua vida e assim enriquecendo os conhecimentos do mundo acadêmico.

Artistas autodidatas recebem nos seus ateliês alunos dos cursos regulares para exercitarem em oficinas por eles ministradas, que detalham “macetes” ou “dicas” que os ajudam a se desenvolveram no processo de ensino/aprendizagem e se aperfeiçoarem nas suas práticas artísticas.

Essa é uma via larga e de mão dupla. Não se pode ignorar que as escolas superiores dão às comunidades artísticas vasto conhecimento, dadas suas capacidades desenvolvidas de gerar, processar e ordenar racionalmente tais conhecimentos.

Está em curso para vir a ser aprovada a Leis dos Mestres na Assembleia Legislativa de Sergipe, já aprovada em vários estados brasileiros. Esta lei visa reconhecer os saberes e fazeres das pessoas experientes vinculadas à cultura.

O Conselho Universitário – Consu - da UFS acabou de reconhecer esses saberes e fazeres, dando títulos de Grau de Mérito Universitário Especial em Saberes e Fazeres e Artes e Culturas Populares a 47 mestres calejados, verdadeiros guardiões do conhecimento de diversas gerações. Essas pessoas não precisaram passar antes por curso de graduação para virem a ser reconhecidas por uma instituição do porte moral e disseminadora do conhecimento como a UFS.

Quem no Sesc ora faz tal exigência, ignorando os artistas autodidatas, está mesmo dirigindo de venda nos solhos, de marcha ré e na contramão em via estreita com fila dupla de postes elétricos robustos. Cuidado, os postes não são de borracha.

[*] É artista visual, integrante do Fórum Permanente de Artes Visuais, membro da Academia de Letras de Aracaju e conselheiro do CEC – Conselho Estadual de Cultura de Sergipe.

 

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