Aparte
Opinião - A mulher que sonha ser gente

[*] Lelê Teles

“Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome” Caetano Veloso 

Ao deixar o cárcere, onde esteve reclusa por 18 dias, Rosângela Sibele de Almeida Melo, de 41 anos, desabafou: “Meu grande sonho é ser gente. Eu ainda não sei o que é isso, não sei o que é ser mãe, filha, irmã...” 

Engana-se quem acredita que a gente nasce gente. Na verdade, a gente se torna gente. Gente é uma construção social. Só existe gente em meio a outras gentes. 

Nós somos animais cívicos, como definiu Aristóteles. É nos outros que eu me reconheço, é com os outros e pelos outros que eu me defino. 

Somos seres incompletos, ou carentes, como disse o filósofo grego. Por isso, necessitamos tanto das coisas quanto das pessoas.  

Nossa completude só se realiza quando mantemos relações e trocas. A família, os colegas, os amigos e a sociedade são mais que um grupo de pessoas com as quais temos interações. Eles são a humanidade. São a parte de mim que parte de mim e se projeta pra fora. 

É por isso que esperamos empatia dos outros. A fraternidade e a sororidade, ou seja, a irmãodade e a irmãdade, são formas de proteção coletivas que me estruturam dentro de um grupo, separado por gêneros. 

Por essas formas de interação e troca, inventamos diversos e variados mecanismos de humanização. 

Até na hora da morte fazemos rituais coletivos para nos despedir do outro e choramos, mesmo que o outro não possa mais enxergar as nossas lágrimas. 

É que choramos pelo outro, mas não para o outro. Nosso choro é para os outros, para os que estão vivos, como disse Marcel Mauss. 

Porque aquele que parte é uma parte de cada um de nós partindo. A gente reparte a dor da partida porque ela também define a nossa finitude. 

Compreende agora o grito de dor e fome lancinado por dona Rosângela? 

Ela não está sozinha como um misantropo, que o faz por escolha, como o Rousseau d’Os Devaneios do Caminhante Solitário, que vira asceta para acertar as contas com a sociedade. 

Sua solitude, a da dona Rosângela, é uma construção político-econômica e ideológica. Ela é mais uma vítima da necropolítica, diria Achille Mbembe. 

Essa senhora não se enxerga como gente porque está apartada da família, mas também porque está excluída da sociedade, por ser desempregada e dependente química pobre. 

Ela não leu Aristóteles, mas soube definir filosoficamente o que é ser gente. Rosângela cometeu o que se chama de crime famélico: furtou para saciar a fome. 

Mãe de cinco filhos, essa infeliz está desempregada, como desempregados estão quase 15 milhões de brasileiros. 

Essa pobre mulher faminta furtou um refri, um macarrão instantâneo e um suco instantâneo e, por esse crime terrível, ela foi mandada ao cárcere pela ação de duas mulheres - uma promotora e uma juíza. 

Ou seja, as sista, as sorelle, as irmãs, também lhe viraram as costas. Como se vê, Rosângela está só no mundo... e sente fome. 

E foi sentindo o ardor da fome no estômago que Rosângela viu Bolsonaro comer, sorridente, uma picanha que custa R$ 1,8 mil o quilo. Como se sentir gente, gente? 

Um cão, um gato, um pet como dizem, é mais gente que dona Rosângela. Esses animais já recebem até nome de gente, são tratados como gente, usam pulôveres no frio, sapatênis, vão ao psicólogo, ao médico, ao dentista - fazem mais de três refeições por dia e recebem amor e carinho. 

Ah, esqueci de um detalhe. Além do gênero, as pessoas também são segregadas por classe e raça. 

Não é de hoje que sabemos que os negros foram definidos como seres sem alma, como quase humanos, porém incivilizados e incivilizáveis. 

Os pobres, tratados como deficientes cívicos pelo Estado, são destratados como não-gente pela sociedade burguesa anti empática. 

Josué de Castro, o médico e geógrafo pernambucano, ao experienciar a terrível luta do homem por alimento num Recife empobrecido, mostrava o ser humano faminto como um bicho: o homem caranguejo. 

O poeta Manuel Bandeira, ao ver um homem revirando o lixo para comer comida comida, por um instante achou que aquele comedor de restos era um bicho. 

Essa bichificação da miséria é uma forma de perceber que aquela gente deixou de ser gente, se alguma vez chegou a ser. 

A miséria é uma condição sub-humana, é uma desumanização. É difícil um miserável se ver como gente, porque sabe que as outras gentes não o veem como um igual. 

A única coisa que têm em comum é serem bípedes implumes. Foi Lula quem enxergou que os miseráveis brasileiros eram seres humanos, que eram gente, foi por isso que ele lhes estendeu a mão. 

Foi com essa empatia que Lula retirou mais 40 milhões de pessoas da miséria absoluta. 

Lula já foi pobre e desgentizado. Ele consegue enxergar a humanidade nesses miseráveis. Por isso Lula é tão necessário. 

Só Lula pode fazer com que o sonho de donas Rosângelas se torne realidade. Por todos os miseráveis e famélicos deste mundo... Oremos ao senhor.

[*] É contista e roteirista.

 

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