Aparte
Opinião - Paisagem cultural, patrimônio e patrimonialização

[*] Maria Augusta Mundim Vargas  

Considerando o que se herda, mas com ênfase na observação e na percepção do mundo presente, a paisagem que vemos estampa nossa cultura. Ela nos faz lembrar que nós, humanos, nos posicionamos no esquema da natureza - Cosgrove,1998 -, ou seja, nos diz muito sobre patrimônio cultural e o sentido simbólico e material de sua existência. 

Sob a perspectiva da dimensão social, as paisagens culturais se inserem no aparato normativo do Estado e esse, como executor da vontade coletiva, pois ele qualifica a materialidade do bem, assim como define sua proteção, resguardo e conservação, sejam eles objetos, saberes ou fazeres que significam e identificam seu povo.

Todavia, em que pesem os interesses políticos e econômicos e os vieses ideológicos, vimos observando um crescente acirramento das questões inerentes ao patrimônio e, nele, as paisagens culturais.

A esse respeito, é oportuno situar a posição de Soares e Quinalha - 2011 - sobre o lugar de memória como um bem cultural simbólico ao se referirem ao passado de violência do período da ditadura militar brasileira.

Embora os autores tratem do exercício da memória em um período pós-hostilidades - i.e., pós-ditadura -, nossa intenção é registrar o encadeamento desse exercício - eles colocam “construção pública da verdade”, “memórias reveladas”, “para que nunca mais aconteça” -, com a realidade atual já novamente basculada pela suspensão do direito aos lugares de memória.

No entrelaço de nossas reflexões sobre os constitutivos que permeiam o conceito de patrimônio e de paisagens culturais, alcançamos o processo de patrimonialização pelo regramento e legitimação do patrimônio como uma construção social. Nesse contexto, o patrimônio é tomado como “ferramenta” da patrimonialização e, portanto, sujeito a um processo de seleção e exclusão até ser legitimado.

Isso posto, questionamos: quais critérios e instrumentos de seleção dos patrimônios que representam a cultura sergipana são usados para legitimar as escolhas? Isso suscita questões profundas que merecem ser postas como motivadoras, para que não se ofusquem os sentidos de nossas paisagens nem tampouco se permitam eliminar nossos bens-patrimônios materiais e imateriais. 

Do levantamento das leis, decretos e tombamentos concretizados em Sergipe pelo Governo do Estado e pelo órgão federal - Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico – Iphan -, no período de 1938 a 2021, tem-se a considerar, mesmo que brevemente, alguns aspectos para além do quantitativo expresso no quadro.

 

Leis, Decretos e Tombamentos estaduais e federais - 1937- março 2021

Período

IPHAN

GOVERNO DE SERGIPE

 

Material

Imaterial

Material

Imaterial

 

TOTAIS

27

11*

44

66*

38

115

Fonte: Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe (https://al.se.leg.br/); IPHAN-

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (http://portal.iphan.gov.br/)

                                       (*) aí considerada a patrimonialização de bens da paisagem natural

 

Independentemente da materialidade ou imaterialidade dos bens, os lugares de memória escolhidos para a salvaguarda pelo Estado situam-se em 33 dos 75 municípios de Sergipe e, chancelados pelo Iphan, em apenas 11 municípios.

Todavia, esse quantitativo não considera a espacialização do tombamento dos saberes e fazeres da renda irlandesa, dos mestres de capoeira, das rodas de capoeira, do acarajé, das quadrilhas, dos forrós e da literatura de cordel que, evidentemente, completam todo o território do Estado. 

Observou-se o direcionamento do Iphan, que perdurou até o início do século XXI, para o tombamento de prédios do período colonial (16), sinalizando o resguardo de nossa herança portuguesa.

As diretrizes do órgão federal influenciaram na atuação do Estado de Sergipe, com destaque para os Decretos (34) que igualmente privilegiaram os bens materiais e os prédios coloniais, respaldados por relatórios e registros de suas características. Até 2002 registram-se o reconhecimento de nove bens imateriais pelas leis e decretos estaduais e nenhum pelo Iphan. 

A explicitação desse quantitativo justifica-se pelo fato de que traduz a distinção de atuação entre as políticas federal e estadual e o crescente distanciamento entre elas. Com efeito, o Iphan volta-se para o reconhecimento de bens imateriais de ampla espacialização e associados a saberes e fazeres de alcance regional - a exemplo da renda irlandesa e da capoeira -; no Estado de Sergipe, os decretos diminuem e as leis passam a comandar a qualificação de nosso patrimônio com ênfase nos bens imateriais.

Registra-se que entre 2019 e março de 2021, foram promulgadas 40 leis estaduais de patrimonialização de bens, sendo 39 imateriais e apenas um, material. 

As leis estaduais vem sendo promulgadas sem a realização de inventário que observe as características (saber, modo de fazer, forma de expressão, por exemplo); a tradição; as mudanças e/ou ressignificações; o entorno espacial, musical, gestual etc. Sem desmerecer a intenção pelo reconhecimento de tradições, a ausência de registro corrobora a fragilidade das leis, na medida em que, ao não registrarem um texto memorial do bem, suprimem a memória de nossas manifestações e expressões culturais materiais e imateriais.

Por outro lado, entendemos que “independentemente da forma tomada pela iniciativa de memorialização, o importante é reter que a memória coletiva é sempre uma construção, feita de consciência e vontade, levada a cabo por ações de grupos; nunca é automática ou espontânea” (Soares; Quinalha, 2011, p. 80).

Assim, acordamos com Ângelo e Siqueira (2019) de que o Estado moderno e o patrimônio marcham lado a lado influenciando-se reciprocamente, nem sempre de maneira democrática e inclusiva. A esse respeito traçamos um paralelo com a suspensão e opressão da cultura popular em todas as suas dimensões.

Presenciamos órgãos e instituições dedicados à gestão de cultura sendo extintos e/ou assolados; lugares de manifestações e expressões culturais estarem suspensos e, portanto, retidos na memória e, ainda, a constituição de uma legislação que não vem contribuindo a contento como instrumento de memorialização. 

Então, retomemos: “construção pública da verdade”; “memórias reveladas”, “para que nunca mais aconteça”! 

Angelo, Elis R. B.; Siqueira, Euler D. de. Patrimônio cultural na contemporaneidade: discussões e interlocuções sobre os campos desse saber. Anos 90, Porto Alegre, v. 25, n. 48, p. 51-86, 2018. DOI: https://doi.org/10.22456/1983-201X.82312. 

Cosgrove, Denis. A Geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas. In: Rosendahl, Zeny; Corrêa, Roberto Lobato (Org.). Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1998. p. 92-122.

Soares, Inês V. Prado; Quinalha, Renan H. Lugares de memória no cenário brasileiro de justiça em transição. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 10, p. 75-88, junho 2011.

[*] É professora do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Sergipe, líder do Grupo CNPq Sociedade e Cultura, e coordenadora do Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro-Sergipe.

 

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