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Por que abusamos tanto assim da natureza
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[*] Daniela Coelho

Tudo começa numa mesa de jantar de um restaurante onde acontecia um evento literário. Havia um prato de caldo de legumes, servido como entrada e em anexo um outro, não menos nobre, apesar do conteúdo, com um guardanapo usado e uma caixinha de geleia de goiaba já consumida. Um prato de restos que ajudaria a transportar o que sobrou do jantar sem dificuldades.

De repente uma pessoa se dirige à minha mesa, vai abaixando a máscara com dedos longos e unhas esmaltadas, num vermelho hemorrágico. A máscara pós-pandêmica, um símbolo de resistência, vai arriando e libertando de dentro do leito franzido e imaculado os lábios que foram se separando como duas lesmas para logo em seguida exibirem a arquitetura de dentes branquíssimos, ávidos por sorrir sem pudor. Eles foram entreabrindo e trazendo para fora a língua que na ponta equilibrava uma bolinha branca mastigada, resto de um chiclete descolorido como se fosse um asteroide mínimo cansado da atmosfera úmida.  

A bolinha coube entre as polpas dos dedos indicador e polegar. Grudenta, veio cruzando o espaço aéreo na direção do prato da minha mesa acompanhada por um pedido de licença sussurrado e foi depositada sobre o guardanapo usado. Acabou desmoronando como uma bola de neve na véspera da catástrofe de uma avalanche.  

A dona dirigiu-se a uma outra mesa, sentou-se e nas suas costas fixei o olhar incrédulo direto no xale que cobria as escápulas. O movimento hipnótico das franjas e das flores coloridas, bordadas escorregando sobre a lisura da cadeira, contrastando com a brancura da mesa sem sobras que ela preferiu. 

Imediatamente meu jantar foi tomado pela avalanche. Imaginei a quantidade de bactérias alienígenas naquele corpo estranho, o motivo pelo qual uma pessoa joga o lixo íntimo no espaço alheio, no espaço público, no mundo.   

E de repente Clarice Lispector veio do meio do nada e sentou-se à mesa comigo acompanhada daquela barata famosa de GH. A dela envernizada, sedutora, com cílios pestanejando; a minha empalidecida, por que já havia sido mastigada, a gosma doce já havia sido chupada à exaustão pelo exemplar que se escondia por baixo do xale florido.  

A minha metamorfose instantânea resultou em perda do apetite. O sentimento básico não era só a repulsa pela falta de educação daquela criatura, mas o trasbordamento dos lixos todos que geramos juntos e somos capazes de jogar em qualquer ambiente para não contaminar o nosso espaço da feiura do que somos e do que consumimos. O oceano, o terreno baldio do vizinho, no aterro contaminando o solo, a água, as plantas, a gente, os bichos.  

A bolinha foi crescendo sobre a mesa e pesando. Criou como se fosse um leito de uma estante de madeira de qualidade duvidosa que cedeu imitando o sorriso da dona do chiclete ao se livrar de seu lixo, no meu espaço. Ela ficou leve depois do expurgo, depois do livramento.

No meu inferno, permaneci com a bola que agora tinha o meu tamanho e já havia desmaterializado Clarice e a barata. Saí do restaurante com ela grudada. Dormi planejando vinganças. Sonhei grudando o chiclete no xale florido, estragando as franjas que ficariam imóveis, privadas do balanço. Gritei com ela, exigindo o recolhimento imediato daquele artefato, fazendo passar a vergonha de quando somos surpreendidos realizando aquilo que nunca faríamos se estivéssemos sendo observados.  

E depois cansada do peso da bolinha, olhei para ela, esmaguei entre os dedos e engoli com se engole um sapo. Desceu grudando na garganta, arranhando a mucosa e lentamente foi se acomodando no fundo do estômago e parte por parte foi sendo incorporada à minha substância.

Todo o lixo do mundo é nosso! Nenhum animal, vegetal ou mineral produz nada que a natureza não incorpore de volta devolvendo um mundo ainda mais completo. Tudo se transforma e converte sua sobra preciosa em algo necessário, vital.  

Nós não temos essa habilidade e se pensamos sobre isso as iniciativas são sempre atrasadas. Agora temos lixo suficiente para destruir o planeta. Então, antes que sejamos obrigados a comê-lo, sugiro refletir sobre o consumo sem precisar de passar por um jantar indigesto.  

Refletir sobre o que se compra, a durabilidade das coisas e o que sobra delas. É urgente! A natureza só tem obrigação de se livrar do que ela mesma produz, e faz isso com maestria. Observar a natureza é sempre inspirador. Então não esqueçamos de olhar também para a nossa própria natureza de predador contumaz, consumidor voraz e de produtor de infernos.  

E quando estivermos todos contaminados pelas nossas sobras, porque já as comemos diluídas na água e nos alimentos, não seremos mais o que somos e, infelizmente, também, nunca melhores, e sem a redenção da personagem de Clarice (GH) não faz o menor sentido, não vai valer a pena ficar até o fim.   

Por tanto, agradeço a dona da bolinha de chiclete que me fez, apesar dos pesares, uma pessoa melhor. Redimida dos meus pensamentos vingativos e sem eficácia, identificados com a natureza da dona do chiclete, que leva cinco anos para decompor na natureza. Sigo infernalmente livre, depositando aqui nesse espaço o que sobrou de melhor do jantar.      

[*] É dentista, poeta, escultora e artesã.  

 

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