Aparte
Opinião - Quando a poesia está toda prosa. Ou: assim é a “Sinfonia da Desesperança”

[*] Lelê Teles

“Sinfonia da Desesperança”, pocket book do poeta, publicitário e jornalista Carlos Cauê, é um livro de prosa poética leve, gostoso de ler e, sobretudo, necessário.

Necessário porque nos ajuda a compreender a dor, o medo, a perda, a resiliência, a empatia, o pavor, a surpresa, o desespero da desesperança e todas as sensações e sentimentos que acometeram as pessoas durantes esses 18 meses de incertezas, choro e ranger de dentes da pandemia do coronavírus.

Sim, sei que estamos todos fartos e cansados de ouvir falar da falta de sorte, da morte, dos mortos e de um monte de tolices ditas por negacionistas tortos.

Mas é sempre bom ouvir os poetas. Porque o poeta, quando não finge dor, cinge dor. Ele a abraça, envolve-a, decifra-a e a devora.

Em seguida, põe pra fora em forma de síntese, como um oráculo que regurgita sabedoria, nos ajudando a compreender a dor alheia, que é melhor do que fingi-la.

Você bem o sabe: a dor não é como a cor, que é igual pra todo mundo. A dor é como o amor, cada um sente à sua maneira.

Pois bem, em 12 contos poeticamente enxutos, preciso nas palavras e conciso nas ideias, o poeta Carlos Cauê faz o que pouco se fez nesses tempos trevosos.

Em “Sinfonia da Desesperança”, as vítimas da Covid-19 ganham nomes, profissões, famílias. Uma biografia. Os mortos ganham vida.

Pela pena empática de poeta-contista, esses personagens deixaram de ser números - nessa estatística macabra a que nos habituamos, que conta os corpos, mas não conta a suas histórias -, e se tornaram gente como a gente.

Quando me deitei na rede para digerir a ceia natalina, numa manhã manhosa e molhada de chuva, o livro estava comigo, como um animal de regaço.

A princípio, chamou-me a atenção o cabalístico número 12. É isso: Cauê encontrou 12 formas de enxergar o mesmo fenômeno. Em verdade, são 12 olhares, 12 reações diferentes, como se cada conto representasse um signo do zodíaco, uma persona, uma forma singular e idiossincrática de sentir.

Ora, Cauê poderia ter escrito um conto único e, como um canceriano que é, encheria páginas e páginas com lágrimas e lamentos. Mas essa seria apenas a sua dor e a sua forma de encará-la.

Cauê quis dar voz a todos. O “Assombro do Mundo” abre o livro, contando a história de uma festa, no terceiro andar de um edifício residencial em Madri, cheia da alegre algazarra espanhola, com amigos abrindo garrafas de vinho e brindando a vida.

Porém, na hora de gritar olé!, a morte sussurrou hola! Assim, os ébrios sorrisos se converteram em rostos sisudos, aplacados por imagens desesperadoras que saltavam do televisor, mostrando um comboio de caminhões atravessando uma avenida italiana, transportando centenas de caixões.

Começava ali o pandemônio da pandemia. A partir daquele momento, o mundo se deu conta de que a morte, cruel e silenciosa, espreitava a todos do lado de fora.

Começava ali as dúvidas angustiantes sobre a fisionomia do inimigo oculto, como era, como agia, como se livrar dele.

Começou ali, também, os confinamentos, os isolamentos sociais e o Bella Chao cantado em varandas solidárias de vizinhos que cumpliciavam as dores e as incertezas coletivas.

O livro segue mostrando os desdobramentos dessa terrível descoberta. E termina no “Quinto Andar” de um edifício residencial, em algum lugar do Brasil, e já com uma expectativa real de volta à normalidade.

O conto é tecido com um otimismo poético. É a história de um casal que se livra do amor erótico que morreu entre eles, cadáver insepulto, mas que é velado sem choro e nem vela.

O casal, resiliente, termina a história da forma mais inteligente possível, com compreensão e sabedoria, despedindo-se e desejando boa sorte um para o outro; vida que segue.

O confinamento da pandemia os fez ver o que a lida do dia-a-dia os impedia de enxergar: o amor também morre.

No mais, essa “Sinfonia da Desesperança” é composta por 12 naipes de cordas que, embora pareça emitir acordes dissonantes, em verdade se harmonizam em uma ópera de caos e de dor. Um réquiem fúnebre repleto de desespero, mas também pleno de esperança e de amor à vida.

No conto “Dilema”, testemunhamos as incertezas e os lamentos do Dr. Ramos, o médico que tem amor pela vida, em contraste com o niilismo de Eduardo, o coveiro que tem pavor dos mortos.

O médico precisa tomar uma decisão salomônica: só há um leito no hospital e, para ocupá-lo, há duas mulheres, donaGertrudes, anciã serelepe e cheia de vida, e Marta, uma jovem atleta, mãe de duas filhas pequenas e com uma vida inteira pela frente.

Ser médico é tomar decisões, e elas podem significar a vida ou a morte de um paciente. É preciso ter paciência e fazer o que deve ser feito de acordo com a sua consciência.

O jovem Eduardo, cansado de tanto enterrar gente e se vendo obrigado, agora, a abrir valas coletivas no cemitério São Lázaro, é aconselhado pelo velho Benedito a seguir na labuta, porque o trabalho do coveiro é cavar.

É dever dos vivos enterrar os mortos, assim como é uma obrigação social chorá-los, como disse Marcel Mauss no magistral “A Expressão Obrigatória dos Sentimentos”.

Ficamos sabendo, também, sobre o novo mundo do jovem Logan que, agora privado de sua vida namoradeira e libertina, se vê isolado dentro de um quarto, tendo que se contentar com um onanismo forçado, como quem diz: antes éramos eu, meu pai e minha mãe, agora somos eu, meu pau e minha mão.

E o que dizer de Dona Olga, a senhora que é admoestada pelos filhos e netos ao tentar colocar a cara pra fora de casa? “Não sai de casa”, “não vai pra rua”, “vó, fica dentro de casa”...

Olga se contenta em ficar na soleira da porta, ruminando suas reminiscências, tentando compreender a anormalidade dos novos tempos. Enquanto isso, ela fuma, porque de alguma coisa tem que se morrer nessa vida.

Em “Cadê Mamãe”, vemos a professora Clara cheia de zelos pela mãe, dona Alzira. A professora Clara sai pra trabalhar e, quando retorna, a mãe já não está e nunca mais estará.

A infeliz não pôde velar o corpo da covidada, não podendo se despedir da morta, a qual não teve tempo de se despedir em vida.

O vazio oco dessa não despedida é como uma mão que acena e fica suspensa no ar, imóvel pra sempre, à espera de que o despedido se volte pra trás para devolver o aceno.

No conto “O Anjo e o Senhor”, uma discussão metafísica machadiana, mostra Lúcifer, o anjo caído, cheio de amor pela humanidade, e um Deus desumano destruindo sua criação.

O anjo rebelde quer salvar a humanidade, padece com o seu sofrimento. Essa refrega entre Deus e Lúcifer nos mostra que não adianta ajoelhar e clamar aos céus. A salvação virá da ciência, da disciplina e da fraterna sororidade entre os humanos. É sobre isso.

Em “Sinfonia da Desesperança”, Cauê nos mostra o luto, mas também nos convoca à luta, porque há que se viver enquanto houver vida. Só a poesia salva. Salve o poeta! Palavra da salvação.

[*] É roteirista e contista.

Foto: Marcelle Cristinne

 

Ω Quer receber gratuitamente as principais notícias do JLPolítica no seu WhatsApp? Clique aqui.